sexta-feira, 9 de março de 2018

V. (2018)

.retratos do quotidiano de um idiota.

.já nem sei mais quem sou. quando estou perto de ti. a minha boca enche-se de palavras. e de beijos. quando te olho. e só consigo dizer - olha lá para mim - e tu. olhas. e perguntas - o que foi - e eu respondo. com a boca inundada de amor - nada - e continuamos a caminhar. lado a lado. com os passos bem medidos. e a chuva. sobre nós. vigiando o meu silêncio. e eu digo algo completamente estúpido. acerca da tua roupa. para libertar parte do peso que preenche o peito. e tu respondes sorrindo. na tua meiguice. confirmando - és mesmo estúpido - e encostas o teu ombro ao meu. eu sei. que por acidente ou porque nesse gesto. medes mal o passo. ou tentas fugir à chuva. e o meu coração dispara até ao fim da rua. e disfarço. olhando para os carros a passar. para as poças de água. e chego até onde meu coração parou. agarro-o. e coloco-o dentro do meu casaco. e sigo. a ouvir-te. queixar do tempo. e porque chove. e porque os carros passam com as rodas nas poças. e porque. as pessoas se escondem debaixo dos guardas-chuva. e porque o teu guarda-chuva deixa passar água e te molha. e eu penso que nele. se reserva toda a inutilidade que sinto. quando eu também deixo passar o tempo. por mim. sem ti. e olho para as tuas mãos. frias. e depois. olho para o chão. e tomo. mais um pouco ao espaço entre nós. com um ligeiro passo. e olho-te para as mãos outra vez. e em seguida percorro o teu rosto. até aos teus olhos. e já não sei como esconder. todo o desconforto que me abraçou. porque só te penso em todas as formas de te beijar. a boca. do sabor dos teus lábios enrugados. do frio. e da minha mão no teu rosto. todas as formas. embrulhadas dentro de mim. e despeço-me. e digo - cheiras bem - ao que me respondes - tomei banho há pouco - e ris-te. 

quinta-feira, 8 de março de 2018

IV. (2018)

.tenho saudades de me deitar a teu lado. e a forma do meu corpo. escrever sobre a cama. a mesma forma do teu. lembro-me constantemente da tua ausência. enquanto dormias. e daquele lugar. em ti. onde as minhas mãos. te agarravam. 

nunca mais voltei. ao lugar. para onde partes. para todos os outros lugares. e sei. que nunca mais o farei. sem ti. 


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

III. (2018)

não sei bem como cheguei até aqui. nem o que me trouxe. se todo o vento guardado nos bolsos. se a dormência sentida nas mãos. ou qualquer memória do teu tempo. onde eras a sombra e o corpo. a luz. e o toque. enquanto andava. não carreguei nada comigo. nem ar cabia na minha camisola. nem pó. me sobrou sobre os ombros e nos cabelos. todos os caminhos eram lentos. alguns escorregadios. outros densos ou menos óbvios. e por entre flores e árvores. os passos eram curtos. e a medo. por vezes. entrava pelo nevoeiro a dentro. de peito feito. e nele. tremia. como poucos homens tremem de si. mesmos. cerrava os punhos. e eram falsos. os dedos a fazer força uns nos outros. cerrava as mãos. e eram falsos. os dedos que estalavam. e me denunciavam. a presença. e na vinda. quase que escapava a todo aquele momento. a todo aquele lugar. sem mar. sem vento. sem morte. sem cheiro ou sal. mas na volta. era trapalhão no gesto. os sapatos rangiam sobre a terra. a terra. encolhia com a água. os sapatos. e por cada passo. dado. um passo. menos largo. e a vida ia encurtando. a vista. e a paisagem ia encolhendo o horizonte. e das noites mais curtas. fiz dia. com a tua lembrança. e dos dias mais longos. dormi. 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

II. (2018)

<desajustado> 
é a mínima palavra que se pode dizer em relação a mim. tal como um passo falha o chão. tropeça. e faz cair o corpo. eu sou a falha e não o passo falhado. aquele vazio de chão que faltou cumprir. ou o pequeno pormenor do gesto. que o pé tomou para não encontrar a razoabilidade do equilíbrio. 

em determinados dias cinzentos. sou o quadrado branco. na face vermelha do cubo de kubrick. ou aquela volta insistente que teimamos dar. onde as peças fazem resistência umas nas outras. e estalam. e resmungam com os dedos. para nunca encontrarmos a solução para fazer a linha. ou a cor toda daquela face. (raio do cubo!)

ou até mesmo. a onda do mar. que falha a terra. e se desfaz em espuma até aos pés. tanto que a onda era para ser. aquele destino fantástico de se enrolar. toda sobre aquela massa de água revolta. e acabar. por se desmoronar contra a terra. até se espalhar pelo vento. em vapor. destemido pelo ar. cruzando-se com os raios de sol. fazendo um arco-iris. (foda-se, isto na minha cabeça é uma imagem do caraças!)


tal como a inutilidade de ter. fósforos. e nada ter para acender. tal como amar quem apenas nos maltrata a carne e nos come os sonhos. tal como ler um livro e não saber no fim. se a personagem morre ou permanece estática e presa aquele papel. tal como ter. vida e vontade num corpo. deitado numa cama. sem dela se poder levantar. tal como. haver pássaros no ar e lugar algum para pousar. matar a fome. e descansar. tal como todo o silêncio entre cada um dos batimentos do coração. tal como ter bolsos e nada ter para neles guardar. e numa casa às escuras. eu sou. a folha dobrada com uma nota escrita. a fazer de lembrete. <não esquecer de pagar a luz> 


terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

I. (2018)

.eu sabia onde te encontrar em qualquer multidão. se toda gente estivesse vestida de negro. tu terias mais brilho no opaco das tuas roupas. se estivesse toda gente apressada. tu estarias de passo lento e demorado com a luz a esbater-se no teu cabelo. se estivesse tudo à procura de alguém. tu estarias à espera de mãos cruzadas e de pele fria. é assim. que o tempo se prolonga entre nós e se encolhe em cada corpo que encontra na multidão e se estende e estica até à escuridão daquele perímetro de gente. e volta. para te encontrar a balançar sobre o destino partido. a dançar com outros braços. a rir com os olhos noutros olhos. e nesse momento. mais ninguém seria testemunha de qualquer ausência. senão a minha. senão. eu.

.assim. todos os dias escrevo uma carta para te entregar. e em todas escrevo na candura do papel. que vou para longe de ti. ver o mar. e em todas as vezes. espero que esteja de ondas enroladas como os braços de um gigante de coração partido. a tentar salvar um império de náufragos. e o que resta do tempo. o mesmo que não sobra para esperar por ti. a vida é curta para isso. é longa para tudo o resto.

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quinta-feira, 18 de maio de 2017

XLVIII.

em todos os lugares onde estive. vi mãos se juntarem. e vozes fundidas num só lamento. e por vezes. numa só palavra. a romper. a luz. lembro-me. algumas vezes. ter abraçado os meus bolsos com os dedos. e apertado o vazio. até à sua asfixia. sim, eu já vi o vazio. morrer. e nesse tempo. todo eu. era um homem. só. a escrever nas paredes dos prédios. coisas sobre ti. que tu.

nunca leste. 

deve haver. neste intervalo. que se fecha todas as noites. uma vida por viver. que talvez. não seja a de quem sufocou todos os medos. com as mãos fechadas nos bolsos. ou mesmo. daquele. que em todos os lugares onde esteve. nunca viveu. em lado. algum.


segunda-feira, 15 de maio de 2017

XLVII

todas as manhãs. quando acordo. tenho as mãos fechadas debaixo do peito. costumo dormir de barriga para baixo. corpo na cama vincado. as coxas contidas contra o colchão. os pés. enrolados um no outro. meia almofada abraçada. a outra meia. parte. para a esconder o rosto. outra almofada inteira. para abraçar a cabeça. corpo meio tapado até aos rins. 

naquele silêncio. emprestado aos pássaros nas árvores e aos carros. colados à estrada. e à luz. turva. que atravessa o quarto. até ao meu corpo. abandonado. a mim. consigo sentir. todo o peso do ar. contido. abro as mãos. e tento desfazer os nós. de um rasgo de vida. daquela manhã. 

.é outro dia. digo. 
é o mesmo. dia. de sempre. penso. 

abro. lentamente. os olhos. que já me viam de dentro para fora. e escolho. levantar-me. daquela frieza toda.